Lísias sob o manto de Fedro: linguagens, tecnologias e a Modernidade despida
As tecnologias da linguagem, a linguagem como tecnologia e, por fim, a linguagem (simultaneamente) como teoria, método e ferramenta para construção de tecnologias são fruto de um longo processo reflexivo que tem aparentemente a Modernidade, em maiúscula, como sua progenitora (a questão do livro como uma questão pós-gutenbergiana). No entanto, é através de inflexões filosóficas pontuais, desde a Antiguidade, que podemos repensá-la no presente.
A primeira dimensão pode ser reconhecida como aquela mais genericamente abordada no contexto atual. Trata-se de um modo de perceber e listar o conjunto abordagens e instrumentos projetados para o desenvolvimento e-ou usados deliberadamente em tais dispositivos para dispor ou dar fluxo a dados linguísticos, verbais ou a-verbais. Aglutinam-se aqui os sistemas em linha contemporâneos de acesso à informação, mas também livros, aparelhos radiofônicos, transmissores de dados de imagem em movimento, por exemplo, em geral reunidos sob a noção de “tecnologias da informação e da comunicação” – o que Auroux (1998, 2009) caracteriza como terceira grande revolução técnico-linguística.
A segunda dimensão, a linguagem como tecnologia, visa ao modo de interpretação das articulações fundacionais de nossos meios de comunicação como fonte a priori do desenvolvimento das tecnologias ditas da linguagem, como aquelas mencionadas acima. Trata-se de perceber a própria linguagem em sua atividade, em sua “práxis” na coletividade dos indivíduos, como a tecnologia “em si”, como um desdobramento da técnica e uma reflexão ativa sobre a própria arte, sobre o próprio fazer da linguagem. Isto significa dizer, em síntese, que, resguardadas todas as diferenças e singularidades de cada tecnologia da linguagem, todas elas “são” parte desta categoria a priori (porém, ressalta-se, uma anterioridade não metafísica, mas linguística, ou seja, coletivamente tecida a partir de grupos de indivíduos) na medida em que são “filhas” de uma tecnologia já dada, a linguagem, capaz de gerar uma miríade de potencialidades e atualizações no mundo da linguagem.
Deste modo, o movimento, não demarcável no tempo histórico, mas possível de uma “sugestão” na dedução filosófica, da oralidade, assim como o da escrita, são, antes de técnica, frutos de uma certa “tecnologia sócio cognitiva” que nos permitiu a imagem desenvolvida sob novos arranjos destas dinâmicas técnicas sócio materiais, ou seja, escrita e oralidade, podendo, para tal, refletir, como um logos sobre a técnica, ou ainda, racionalidade, discurso sobre ela, a técnica.
É nesta última margem que podemos situar, como desdobramento reflexivo, a dimensão derradeira: a linguagem (simultaneamente) como teoria, método e ferramenta, fonte de desenvolvimento e crítica das próprias tecnologias da linguagem. Em certa medida esta discussão está presente em toda a querela da linguagem nos diálogos platônicos, principalmente no Fedro, no Górgias, no Sofista e no Protágoras. Trata-se de adentrarmos no jogo que postula a linguagem (no sentido socrático-platônico) não como fonte da filosofia, não como possibilidade de verdade, todavia, ao mesmo tempo, de reconsiderá-la todas as vezes em que se coloca o discurso sobre o ser em questão. Em outros termos, a filosofia não pode sucumbir à linguagem, pois esta, quando muito, é uma ferramenta, e, enquanto tal, assim deve ser tomada. Porém, na ausência completa de linguagem, em que condição se expressa a filosofia, sob quais estacas se instala a possibilidade de verdade tecida entre os homens?
Algumas fontes
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