Emanuele Tesauro e a fundação barroca da Organização do Conhecimento
O Barroco, enquanto estilo artístico, representa uma profusão de elementos que contrasta com as escolas da pintura e da escultura anteriores, inserindo, principalmente, a linha curva e o foco nas expressões do sentimento humano em sua máxima condição. Em um sentido etimológico, diz-se, em geral, que o substantivo “barroco” responde por uma pérola de formato anômalo, ou irregular, ou fora do comum, ou, ainda, singular.
Como aponta Carpeaux (1990), o estilo barroco foi reconhecido durante muito tempo como um padrão da decadência da arte. O teórico reconhece o Barroco como um sistema de civilização, de substância latina. Reúnem-se aqui elementos como o maravilhoso, o colossal, o prodigioso. Do Renascimento ao estilo barroco, encontra-se a passagem da forma fechada para a forma aberta, e do estilo plano para o estilo profundo. A ideia, representada, por exemplo, pela noção italiana de barrocco, isto é, “acumulação”, nos ajuda a compreender as relações entre a linguagem, a organização dos fatos linguísticos e suas ocorrências artefactuais. A cumulatividade das linguagens e das coisas e a capacidade de significar dessas instâncias como marcas do Barroco inspiram diretamente o pensamento de Emanuele Tesauro. A figura da alegoria no diálogo com as Categorias e a Retórica aristotélicas terá lugar central em sua tentativa de, no plano da linguagem, abrir as possibilidades de uma visão formal e precisa do mundo e compreender as dinâmicas variáveis de construção/ ou na construção do sentido. Transposta ao longo do decurso de luta por uma positivação do real representado, ou, ainda, da invenção do real através da representação, encontramos essa manifestação na construção de uma teorização e de uma metodologia para as práticas de organização e de representação do mundo das palavras e das coisas nos últimos 400 anos.
É por essa razão, pela “origem” barroca da representação das palavras, dos processos e das coisas, que uma teoria da OC pode ser criticada por não conseguir, ela própria, se organizar; não atingir, ela própria, uma classificação coerente de si; não estabelecer, ela própria, um vocabulário controlado mínimo e estrutural sobre seu léxico teórico e metodológico; não construir, enfim, um tesauro capaz de representar todas as combinações possíveis de seus construtos conceituais.
Segundo Souza (2007), para o desafio da descontextualização, mecanismos foram criados com vistas à flexibilidade (no Barroco, diríamos, à abertura ao mundo), intencionando reagrupar de modo distinto, não hierárquico, os termos, bem como elaborando sistemas relacionais. Os potenciais que provêm das forças combinatórias da linguagem geram, por exemplo, os tesauros facetados. A solução, porém, ainda depende e sofre com a dinâmica de recontextualizações que o plano sociopolítico estabelece. Chegamos, no sentido aplicado com repercussões epistemológicas, aos instrumentos folksonômicos, que procuram adentrar de maneira ainda mais direta na dança das intersubjetividades de cada plano classificatório, de cada comunidade de produção de sentidos. Esse marco pode ser classificado como o bojo do simbólico, esfera de atuação teórica e aplicada de uma teoria barroca em Emanuele Tesauro.
Nesse terreno do simbólico, segundo Eco (1984), encontramos em Tesauro um precursor, seja no plano da organização da linguagem, seja no diálogo com os problemas da discursividade. Trata-se da procura, ainda no Seiscentos, pela constituição de um modelo de universo semântico organizado, partindo das categorias aristotélicas e suas ações, mas também a fundamentação discursiva (retórica) do real, constituindo um “índice categórico”, preocupado com as relações entre os termos e as coisas que os mesmos designavam.
Seguindo um modelo de organização enciclopédica, Tesauro estabelece para Eco (1984) uma estrutura fundamental para a futura semiótica, ou seja, tentando compreender os tropos e os signos, o teórico neobarroco Emanuele concebe um experimento que coloca em jogo a conceitualidade e a discursividade. Trata-se, pois, de um diálogo direto entre “um” Aristóteles do Organon e “um” Aristóteles da Retórica, provavelmente um dos maiores dilemas atuais na construção de uma web pragmática, pautada nas associações contextuais do ponto de vista da ação da alteridade em seu lugarmundo em rede.
No plano puramente retórico, Tesauro (1670) conceberá o que Proctor (1973) chama de abordagem figurativa, ou uma estrutura que aborda a relação entre sentido, emoção e inteligência. Seus experimentos procuram não apenas, nesse aspecto, isolar e relacionar termos para identificar seus efeitos sígnicos e simbólicos. A atividade teórica tesauriana também permite, na sua técnica combinatória, identificar outros significados a partir da relação entre as ideias.
Algumas fontes
CAPURRO, R. What is Information Science for? a philosophical reflection In: VAKKARI, P.; CRONIN, B. (Ed.). Conceptions of Library and Information Science; historical, empirical and theoretical perspectives. In: INTERNATIONAL CONFERENCE FOR THE CELEBRATION OF 20TH ANNIVERSARY OF THE DEPARTMENT OF INFORMATION STUDIES, UNIVERSITY OF TAMPERE, FINLAND.1991. Proceedings... London, Los Angeles: TaylorGraham,1992. p. 82-96.
CARPEAUX, Otto M. Teatro e estado do barroco. Estudos avançados, São Paulo, v. 4, n. 10, p. 7-36, sep.\dec. 1990.
DAHLBERG, I. Knowledge Organization: a new Science? Knowl. Org. 33, n.1, 2006 p. 11-19.
ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. Lisboa: Instituto Piaget, 1984. FROHMANN, Bernd. Rules of indexing: a critique of mentalism in information retrieval theory, Journal of Documentation, Vol. 46 Iss 2 pp. 81 – 101, 1990.
GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Desclassification in Knowledge Organization: a postepistemological essay. Transinformação, Campinas, v.23, n.1, p. 5-14, 2011. HJØRLAND, B. What is Knowledge Organization (KO)? Knowl. Org. 35, n. 2/n.3, 2008 pp. 86-101.
LANCASTER, F. W. Indexação e resumos: teoria e prática. Brasília, DF: Briquet de Lemos, 2004.
OTLET, Paul. Traité de documentation: le livre sur le livre: théorie et pratique. Bruxelas: Editiones Mundaneum, 1934.
PEIGNOT, G. Dictionnaire raisonné de bibliologie, tomo I. Paris: Chez Villier, 1802a.
PROCTOR, Robert E. A theory of the conceit?. MLN, v. 88, n. 1, p. 68-94, jan. 1973. SALDANHA, Gustavo S. SILVEIRA, N. C. Own name in Knowledge Organization Epistemology: a philosophical-theoretical debate. Knowledge Organization, v. 43, p. 265-278, 2016. SALDANHA, Gustavo S. The Philosophy of Language and Knowledge Organization in the 1930?s: Pragmatics of Wittgenstein and Ranganathan. Knowledge Organization, v. 41, p. 296, 2014. SALDANHA, Gustavo S. Transgramáticas: filosofia da Ciência da Informação, linguagem e realidade simbólica. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, v. 6, p. 01-30, 2013. SALDANHA, Gustavo S. SILVA, L. K. R. Os sistemas bibliográficos em Gabriel Peignot: uma metabibliografia científica. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 22, p. 96-119, 2017.
SALDANHA, Gustavo S.; SOUZA, Rosali Fernandez de. Teoria barroca da organização do conhecimento: Emanuele tesauro e o espelho turvo das tensões entre epistemologia, metodologia e sociedade Inf. Inf., Londrina, v. 22, n. 2, p. 11 – 32, maio/ago., 2017.
SOUZA, Rosali Fernandez de. Universo de Ciência e Tecnologia: organização e representação em classificações do conhecimento. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, vol. 5 n. 1, 2012. Disponível em: <http://inseer.ibict.br/ancib/index.php/tpbci/article /view/65/125>. Acesso em: 30 mar. 2016.
SOUZA, Rosali Fernandez de. Organização do conhecimento. In.: TOUTAIN, Lídia M. B. B. (org.). Para entender a Ciência da Informação. Salvador: EDUFBA, 2007. p. 103-124.
SOUZA, Rosali Fernandez de. Organização e representação de áreas do conhecimento em ciência e tecnologia: princípios de agregação em grandes áreas segundo diferentes contextos de produção e uso de informação. Encontros Bibli (UFSC), v. especi, n.núm.esp., p. 1-15, 2006.
TESAURO, E. Il Cannocchiale Aristotelico. Berlin: Verlag Gehlen; Zürich: Bad Homburg, 1670.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. 2. ed. São Paulo: Abril