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Branquitude e o mito da democracia racional: o bibliotecário e as lutas da crítica informacional

A construção da Branquitude aconteceu durante os processos históricos ocorridos no mundo como a escravidão, o tráfico de africanos, a colonização e a construção de nações e nacionalidades na América e a colonização da África.

A Branquitude acontece quando “os brancos tomam sua identidade racial como norma e padrão, e dessa forma outros grupos aparecem, ora como margem, ora como desviantes, ora como inferiores” (SCHUCMAN, 2014, p. 46). Conforme Cardoso (2011, p. 81), “a branquitude, ou identidade racial branca, se constrói e reconstrói histórica e socialmente ao receber influência de escala local e global. Não se trata de uma identidade racial homogênea e estática”, pois ela se modifica ao longo do tempo.

Os Estudos sobre a Branquitude no Brasil, começaram no início deste século nas obras de Gilberto Freyre no ano de 1962. Conforme Cardoso (2008), o termo foi utilizado por Freyre quando este utiliza a palavra branquitude em analogia à palavra negritude. Assim,

No desenvolvimento do seu raciocínio, Freyre criticará tanto a utilização da ideia de negritude, quanto a utilização da ideia de branquitude vinculada a realidade brasileira, “porque se trataria de uma mitificação dualista e sectária contrária a ‘brasileiríssima’ prática da democracia racial através da mestiçagem” (CARDOSO, 2011, p. 83).

Nos Estados Unidos, os primeiros estudos críticos deste tema, conhecido com o nome de critical whiteness studies tiveram início na década de 1990 com o objetivo de lutar contra o racismo (COROSSACZ, 2014). Estes estudos buscaram entender o lugar do grupo social branco dentro da sociedade, além de compreender os seus privilégios e o poder que estes possuem sobre outros grupos étnico-raciais.

O sociólogo Guerreiro Ramos (1957) com seu trabalho intitulado Patologia social do “branco” brasileiro, foi o primeiro a tratar da identidade racial branca no país. No entanto, o termo utilizado pelo autor era “brancura” que posteriormente passou a ser nomeado como “branquitude”, visto que brancura tinha relação com o fenótipo da pessoa de identidade racial branca, ou seja, pele clara, cabelo de textura lisa, cor dos olhos azuis, verdes ou castanho claro, nariz com formato afilado, entre outros aspectos que a caracterizam enquanto pertencente ao grupo racial branco (CARDOSO, 2008).

Autores como Frantz Fanon (1980), Lourenço Cardoso (2011) e Lia Vainer Schucman (2014) abordam os estudos críticos da Branquitude e como ela perpetua os privilégios simbólicos e materiais dos ditos “brancos” quando em relação aos não brancos, como contribui para o racismo e os efeitos psicológicos que causa no processo de construção da identidade negra, dentre outros aspectos.

Resgatar este conceito é necessário para o entendimento e reflexão sobre o porquê das desigualdades sociais, econômicas e étnico-raciais que ainda existem no nosso país e que mantém as populações não-brancas em escalas de pobreza e subalternidade (quando em relação aos brancos), muitas sem acesso a direitos humanos fundamentais para a vida de um sujeito.

Cardoso (2008) afirma que ser branco significa estar no poder, visto que “a identidade racial branca é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos e materiais palpáveis que colaboram para reprodução do preconceito racial, discriminação racial “injusta” e do racismo” (CARDOSO, 2011, p. 81). Para Schucman (2014), ser branco é deter o lugar simbólico da branquitude.

Tal fato, é observado pelas posições e lugares que estes sujeitos ocupam na sociedade, não somente pela sua genética. Neste sentido, mesmo que inconscientemente, os sujeitos brancos exercem em seu cotidiano ações que contribuem para a desigualdade racial e o racismo. É preciso então, entender que o poder da Branquitude não está no indivíduo, mas sim na sociedade que criou estruturas de poder sociais que permitem a continuação do racismo e das desigualdades étnico-raciais (SCHUCMAN, 2014).

A autora supracitada destaca ainda, alguns pontos que caracterizam a Branquitude, a saber: a invisibilidade da identidade racial branca, os privilégios materiais que os brancos possuem em relação aos não brancos e que irão permitir a reprodução de ações vantajosas para os brancos quando comparado aos não brancos, tais como a facilidade de acesso à educação, à oportunidades de emprego, à transferência de riquezas por herança, etc. Há também a questão dos privilégios simbólicos que os brancos têm em relação aos não brancos quando se aborda atributos e significados positivos, tais como, inteligência, beleza, educação, etc. e que supostamente trazem uma “superioridade branca” que caracteriza a Branquitude. Além disso, outro ponto trazido pela autora é o Lócus Social da Branquitude, que pensa a localização da branquitude na sociedade enquanto estrutura de dominação (SCHUCMAN, 2014).

Nessa toada, Sovick (2004) chama a atenção para a mídia e os meios de comunicação de massa que contribuem na produção de desigualdades sociais e étnico-raciais entre brancos e não brancos. Em novelas ou filmes, por exemplo, os sujeitos brancos possuem papéis de destaque enquanto personagens centrais da trama, dotados de beleza e inteligência e com cargos de alto poder aquisitivo. No entanto, os personagens não brancos como os negros, são representados em papéis de subalternidade, estereotipados e como seres inferiores ou objetificados. Salientamos também, que há indivíduos que concordam com esta posição e que utilizam conscientemente seus privilégios como brancos para exercerem o racismo propagando de forma direta ou indireta a pretensa supremacia racial branca. (CARDOSO, 2008; SCHUCMAN, 2014).

Outro ponto que colabora para a manutenção da branquitude é o “mito da democracia racial”, ou seja, a afirmação de que todos somos iguais em direitos e deveres dentro de nossa sociedade. No entanto, refletimos a veracidade desta afirmação quando as notícias que acompanhamos diariamente nos mostram o aumento do número de jovens negros mortos pela polícia e a quantidade expressiva de pessoas negras residentes nas penitenciárias brasileiras.

O “mito da democracia racial” é discutido por Guimarães (2001, p. 122) que afirma:

"[...] Ainda que a nação brasileira tenha-se formado a partir da mesma matriz colonial americana, ou seja, do transplante de povos europeus para as Américas em situação de domínio sobre as populações indígenas aqui encontradas e sobre o também grande contingente de africanos escravizados, ainda assim, digo, acredita-se, em geral, numa certa excepcionalidade brasileira, que teria superado as diferenças raciais originais. Isso porque a solução brasileira ao problema da integração dos ex-escravos negros e de descendentes dos povos indígenas à sociedade nacional passou, primeiro, por negar a existência de diferenças biológicas (capacidades inatas), políticas (direitos), culturais (etnicidade) e sociais (segregação ou preconceito) entre esses e os descendentes de europeus, com ou sem misturas, e, em segundo lugar, por incorporar todas essas diferenças originais numa única matriz sincrética e híbrida, tanto em termos biológicos, quanto culturais, sociais e políticos. É o que se convencionou chamar de democracia racial."

Conforme Santos (1935 apud PEREIRA, 2007, p. 237), o “mito da democracia racial” possui três partes que a fundamentam: “1ª) nossas relações de raça são harmoniosas; 2ª) a miscigenação é nosso aporte específico à civilização planetária; 3ª) o atraso social dos negros, responsável por fricções tópicas, se deve, exclusivamente ao seu passado escravista”. Isso sugere que, se o negro se encontra hoje em condições de trabalho subalternizado, se possuem baixa escolaridade e se são pouco representados nos espaços de dominação, a culpa é única e exclusivamente deles.

Neste sentido, é oportuno utilizar o questionamento de Cardoso (2015) quando esta pergunta sobre qual o papel representado, personificado e incorporado dentro de uma unidade de informação sobre a história das populações afrodescendentes, bem como questiona se o bibliotecário está preocupado com a preservação da cultura e registro dessas populações.

A mesma autora chama atenção para um ponto extremamente importante: que o bibliotecário pode ser um reprodutor de um discurso que reforce o sistema cultural dominante e o complexo de inferioridade que foi construído ao longo dos séculos nos usuários afrodescendentes, além de fortalecer posições como a do “branqueamento” e da “democracia racial” constituídos no período pós-abolição.

Entendemos que esta atitude do bibliotecário acontece por causa da Branquitude, pois estamos em uma sociedade dominada por um grupo que valoriza os padrões eurocêntricos e anglo-americanos que não se reconhece como pertencente a um grupo étnico-racial, mas sim como padrão a ser seguido dentro da sociedade, aquele considerado normal.

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