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SAMIZDAT E A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO LER: a ficção do mundo na Czechoslovakia (1989-1991)

Milan Kundera, escritor tcheco, publicou em 1984 um clássico da literatura mundial: “A insustentável leveza do ser” (ILS). Neste romance existencial, de viés político-filosófico, Kundera narra o drama da vida na Tchecoslováquia, entre o final dos anos 1960 e início dos 1970, submetida ao peso repressivo dos avanços soviéticos. O ser, em seu dilema ontológico, encontra-se mais uma vez frente a querela de suster o peso opressor dos valores morais impressos sobre si e a leveza insustentável da liberdade que suspende o instrumento escritural sobre a superfície da escrita e na radicalidade desta contingência, supostamente diz: preferiria não (I would prefer not to) imprimir sobre ti valores necessários, ou, não há dívida (sollen) alguma entre nós. A necessidade da impressão se dá na contingência das decisões coletivas livres de coerção, ficcionais, pois fabricadas por nós – fictio quer dizer fabricar, e não por um Eu individual (o sujeito do mundo neoliberal) ou coletivo (o partido do mundo soviético). Esta ficção do mundo é um princípio da Samizdat (самизда́т, autoimpressão), é um princípio da liberdade, é um princípio da leitura. Para um mundo imperativo, este é um princípio subjuntivo da subversão.

Kundera, nas parábases filosóficas da ILS, remonta o problema da leveza e do peso à Parmênides (530 a.C. – 460 a.C.). Curiosamente, Parmênides (1) em seu poema “Da Natureza” diz-nos: i) no fragmento 3, “[...] pois o mesmo é logos e ser”, ii) no fragmento 5, “para mim é o mesmo por onde hei de começar: pois aí tornarei de novo” e, por fim, nos fragmentos 7-8, “o mesmo é o que há para pensar [logos] e aquilo por causa de que há pensamento.” Este “mesmo” é o que nos conduz a dizer que a insustentável leveza do ser é a mesma que a insustentável leveza do ler. A palavra “ler” deriva do verbo latino “legere” que, por sua vez, deriva do verbo grego “legein” que significa o substantivo “logos”. Assim, ler e ser são o mesmo; a condição do pensamento que manteve viva a esperança e a ficção de um mundo outro tcheco. Um outro códice. Não mais o da história única e uniformizante – gosizdat: códices morais do estado soviético –, todavia, um subversivo, libertário e aberto à alteridade do existir – samizdat: códices clandestinos efervescentes de fictícias liberdades e humanidades de um mundo “irreal”, pois plural, pois possível.

Transmission of energy, livro de artista publicado como samizdat por I. Kabakov, em 1986. (HÄNSGEN, 2015, p. 58-59) (2)

Neste sentido, a pesquisa empírica de Aleš Haman (1995) sobre a recepção das obras de ficção pelo público leitor na Tchecoslováquia entre 1989 e 1991, mostra-nos como a leveza, ou, a “literatura leve” como chamada pelas autoridades comunistas, ocupou, com sua sutileza e engenho, as mãos dos leitores tchecos, em proporções públicas muito maiores do que as enfadonhas gosizdat. Haman, curiosamente, aponta uma longa tradição de estudos sobre leitura na Biblioteconomia tcheca, iniciada no século XIX, que assinala uma predileção para o estilo realista, com temática direcionada ao passado nacional e aos temas cotidianos, típicos do realismo. Essas pesquisas, com a ascensão do comunismo, passaram a ter objetivos ideologicamente predeterminados e as metodologias eram adequadas aos resultados esperados, sendo estes, rotineiramente manipulados em prol da “reeducação dos cidadãos do país” ao modelo vigente. Durante os anos 1980, a Biblioteca Estatal da Tchecoslováquia, sediada em Praga, organizou uma equipe com o propósito de implementar novos métodos de investigação sociológica dos padrões de leitura. O universo de pesquisa: a rede de bibliotecas públicas, as editoras filiadas e uma grande livraria de Praga. O resultado foi que as gosizdat ocupavam boa parte das prateleiras das bibliotecas públicas, como era de se esperar, contudo, a função ideológica das instituições culturais estava fissurada, pois a literatura ocidental era a mais lida, com especial atenção para a estadunidense, enquanto a literatura soviética enfrentava um grande desinteresse, ocupando as últimas posições do survey.

Com o fim do comunismo em 1989, um novo relatório foi publicado pela Biblioteca Nacional de Praga em 1992, compreendendo o triênio 1989-1991. Com o desmantelamento do sistema de publicação centralizado e controlado pelo Estado (gosizdat), o mercado editorial desenvolveu-se, surgindo no triênio cerca de 2000 editoras privadas, com temáticas circulando desde as belas-letras até a magia negra, assim como, jornais, periódicos e outras literaturas populares, como as pornográficas, líder do “novo” mercado. Autores como Milan Kundera e Václav Havel, proibidos até 1989, apareceram pela primeira vez nas listas. Em contrapartida, os índices de leitura daqueles autores que colaboraram com o regime comunista diminuíram expressivamente, o que demonstra a correlação entre as mudanças sociais e os padrões de leitura. Haman assinala que 45,4% das obras mais lidas foram publicadas nos anos 1990 e 42,9% nos anos 1980, variando, entre autores nacionais e de países com rica tradição literária, como Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha. Outro dado levantado foi que os leitores tchecos preferiam, como historicamente demonstram os estudos da Biblioteconomia tcheca, as literaturas realistas, com tendências à abertura de novos horizontes e focadas nos aspectos espirituais da existência humana. Por fim, Haman aponta a fragilidade do padrão teórico de análise, baseado na divisão entre “alta” e “baixa” literatura; a “alta” significando as obras clássicas de compreensão do mundo e a “baixa” as obras marginais, em geral, vinculadas ao lúdico. Apesar de se tratar de um survey com viés quantitativo, Haman chega a uma conclusão qualitativa: tanto a “alta” quanto a “baixa” literatura se prestam à uma crítica moralizante da má conduta social, contudo, o que faltava, levando em conta a delimitação temporal da pesquisa (1989-1991), era uma arte socialmente comprometida. Diríamos: um outro códice. Este está aí, latente e subversivamente disposto nas contingentes ficções humanas, como um samizdat “sempre à espreita dos raios do sol” (3).

Samizdat

Which meant, simply, that you met someone

in an empty hallway, or behind an alley wall,

and that person handed you a typed chapter

of a forbidden book. You concealed it among

the papers in your briefcase, and carried it back

to your flat, and hid it.

Then, during the night,

while the others were sleeping, you took over

the family typewriter, and began to type out

an original and four carbon copies. The task

might take several long nights, and always

you listened for odd footsteps among those

that came and went in the corridor outside

the door, or along the passageway to the loo.

Always you paused, always you were cautious,

because there were agents who went around

late at night, hoping to detect the tap-tap-tap

of typewriters.

While you typed, you smoked

furiously, trying to stay awake, trying not

to make too many errors. When you finished,

you delivered your copies to someone who took

the different chapters, that had been prepared

by your fellow conspirators, and assembled them

into five complete copies of the contraband book,

and passed these on to still others.

In this way

translations of Karl Popper and Mikhail Bulgakov

and Solzhenitsyn and Pasternak and Akhmatova

were given to persons who wished to read them,

persons you might never meet and never know.

Sometimes your own group got together secretly,

to smoke and drink red wine, and listen while

someone read aloud from the book all of you,

working together, had just produced —

the passage,

for example, about the mysterious developments

when the Master, with his strange companions

and assistants, first appears, and takes over

the Theater, to the complete consternation

of all the authorities and respectable citizens.

Jared Carter (4),

Varsóvia, 1970.

HAMAN, Aleš. Reading in Czechoslovakia 1989-1991; A survey of the public’s reception of works of fiction. Intl. Inform. & Libr. Rev., v. 27, p. 75-87, 1995.

(1) PARMÊNIDES. Da Natureza. São Paulo: Loyola, 2009.

(2) HÄNSGEN, Sabine. The media dimension of samizdat. The Präprintium exhibition project. In: PARISI, Valentina (Ed.). Samizdat. Between practices and representations. Lecture series at Open Society Archives, Budapest, February-June 2013. Budapeste: Central European University, 2015. p. 47-60.

(3) Fragmento 15 do Poema “Da Natureza” de Parmênides (2009, p. 19).

(4) CARTER, Jared. Samizdat. Archipelago, v. 10, n. 1-2, p. 112-113, 2006.

Jared Carter é poeta e editor estadunidense, antologizado na poesia americana do século XX.

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