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A cultura das "epistemologias castas" nos estudos informacionais: socioepistemologia da in

Em 1991, quando ganhou o prêmio de livro do ano em Ciência da Informação (CI), conferido pela American Society for Information Science and Technology (ASIST), aquela que se coloca como a grande instituição do campo informacional no mundo no século XX, Frederick Wilfrid Lancaster apontava para uma questão crônica e em curso nos estudos informacionais estadunidenses: a tentativa de reinventar processos e produtos informacionais sob novos termos e expressões.

Lancaster (2004, p. vi) chamava a atenção na preambular “nota sobre terminologia” para certa “redescoberta da roda”, criticando a falsa figuração de construtos aporéticos, de ordem temporal, que exigiam “atualização” de nomes e “concepções” inovadoras para os estudos informacionais. Como nos lembra Bourdieu (2013, p. 51), a “luta simbólica” no “campo universitário”, responde objetivamente pela busca do “monopólio de nomeação legítima”, este, “ponto de vista do dominante que, fazendo-se reconhecer com ponto de vista legítimo, faz-se desconhecer na verdade de ponto de vista particular, situado e datado”.

Especificamente, a crítica de Lancaster, teórico de renome internacional, espécie de “manual” informacional no domínio nuclear da information retrieval (este, saber “distintivo” para a definição de CI no mundo anglófono), que acumulava ali já uma coleção de prêmios e distinções no campo informacional, reunindo claramente os dois níveis de capital científico destacado por Bourdieu (2004a), estava direcionada ao então uso do conceito “ontologia” no domínio da organização do conhecimento.

Diante do avanço dos discursos sobre “informação” na segunda metade do século XX e da presença do conceito em diferentes campos científicos, e tendo as antigas Library Science Schools alterado recentemente, diante deste processo, seus nomes, incluindo o termo information em suas paisagens, o campo em questão se caracterizava cada vez mais por uma arena de lutas pelo uso legítimo da “palavra catártica” do pós-Segunda Guerra Mundial.

Outro resultado da multiplicidade de profissões que agora contribuem para a literatura de análise temática-recuperação da informação está na substituição, sem necessidade, da terminologia, apropriada e reconhecida, da profissão bibliotecária. Exemplo óbvio é metadados. O Oxford English Dictionary (em linha) registra em 1968 como o ano do aparecimento dessa palavra. Na época foi usada para designar dados que descreviam conjunto de dados (numéricos ou estatísticos).

Desde então tornou-se praticamente um substituto para ‘descrição bibliográfica’, denominação esta perfeitamente razoável, com a qual convivíamos há muitos e muitos anos e que é aceita em normas internacionais. Alguém, é claro, poderia argumentar que ‘bibliográfico’ aplica-se apenas a livros. Sua extensão, porém, a outras formas documentárias (como em ‘bases de dados bibliográficos’ e ‘referência bibliográfica’) convive conosco há muito tempo. (LANCASTER, 2004, p. vi-vii, grifo nosso)

"[...] Minha maior queixa, porém, é o fato de o substantivo ‘classification’ haver sido praticamente substituído por (pasme-se!) ‘taxonomy’ (pasme-se duas vezes!!), ‘ontology’ ou até (pasme-se três vezes!!!) ‘taxonomized set of terms’ (conjunto taxonomizado de termos). A maneira como estes termos são definidos em artigos recentes mostra claramente que são empregados como sinônimos de ‘classification scheme’ [esquema de classificação]" (LANCASTER, 2004, p. viii, grifo nosso)

Britânico, Lancaster, ou apenas, “Wilf”, como era afetivamente conhecido pelos pares que lhe conferiram o “renome”, iniciou sua trajetória como assistente-sénior de bibliotecas em Newcastle. Mudou-se para os Estados Unidos em 1959, para trabalhar na Biblioteca Nacional de Medicina, tornando-se o mestre de uma geração dedicada aos processos e processamentos eletrônicos de recuperação da informação. Wilf faleceu em agosto de 2013 e deixou, na vasta obra - dos nove livros de sua autoria, seis foram premiados pela American Library Association (ALA) e pela ASIS (MEDEIROS, 1993) -, um livro com título polêmico e conteúdo visionário: em 1978 o pesquisador publicava Toward Paperless Information Systems.

Um ano após a publicação, na recessão à obra de Wilf, a doutora Estelle Brodman (1979) chamava a atenção para o fato de que qualquer estudo sobre mudanças sócio-técnicas deveria lembrar a relação entre os pequenos incrementos e seus enormes problemas. Seu exemplo está na tecnologia de transporte: os automóveis permitiram o “encurtamento” das distâncias e modificaram a relação entre campo e cidade. Em uma escala macro nos Estados Unidos, as cidades pequenas foram esvaziadas por rápidos processos migratórios (cíclicos, temporários ou definitivos), trazendo, de um lado, abandono e pobreza aos que ficaram; de outro lado, as grandes cidades se incharam, multiplicando-se ao sem-número seus problemas sociais.

Por um lado, a conclusão de Brodman (1979) é que, de fato, no domínio sócio-técnico das máquinas da linguagem, o mundo estava, naquele contexto, se movendo na direção de uma certa “sociedade sem papel”, ou seja, sem artefatos tridimensionais em sua idade vegetal, modelo “áureo” de forma de registro do conhecimento da Modernidade. Sua visão, no entanto, é antecipada por algumas incertezas críticas, dentre as quais:

"And what about libraries and librarians? Will they exist in the future in the same way as in the past? Will libraries gradually "wither away" as only retrospective material in the sciences is available in paper form? Will librarians become deinstitutionalized entrepreneurs of information, brokers on their own, offering pay-as-you-go services? What will happen during the intermediary period to the brave new world?" (BRODMAN, 1979, p. 439, grifo nosso)

Cerca de treze anos depois de lançar aos bibliotecários o desafio da recuperação da informação em “terrenos” eletrônicos, tendo, para isto, colaborado diretamente com as interpretações sobre o próprio futuro da profissão em um possível (ainda nebuloso), mercado de profissionais da informação (no sentido da CI), Lancaster (2004) se apresentava “impressionado” com os usos sociais dos conceitos científicos na CI e a inexpressividade da terminologia epistemológica edificada no campo como possível categoria canônica.

Por trás da preocupação epistêmico-terminológica que teria “assustado” o pensamento lancasteriano existia, no entanto, um grande conjunto de camadas de “distinção” socialmente elaboradas que justificavam a aproximação ao termo. Uma socioepistemologia, à moda bourdieusiana, perceberia que ali não estava um ato de adequação racional de conceitos sob um fórum de objetivistas popperianos. Por trás, uma socioepistemologia perceberia, com nitidez, que estávamos diante de uma “distinção” – não apenas uma “distinção epistêmica”, mas, antes, uma “distinção social”.

O conceito bourdieusiano é aqui apropriado, deste modo, para discutir as formas sócio históricas de escolhas e decisões, posicinamentos e negações no contexto do campo universitário. Trata-se de abordar a ciência – e, por extensão, a epistemologia - como outra coleção dinâmica de preferências e de julgamentos elaborados a-epistemicamente, fruto, no fundo, de relações de (pré)ordem social (se existem distinções, por exemplo, dadas pelas preferências e julgamentos sobre música e cantores que tem como base não uma “natureza”, mas uma “socialidade”, podemos perceber também os julgamentos e preferências por objetos de estudo e conceitos em razão de gestos estruturados por classes sociais distintas que galgam capitais científicos dentro do campo universitário). (BOURDIEU, 2011)

Nesta primeira “impressão”, dois “elementos distintivos socioepistêmicos” saltam aos olhos: a própria epistemologia (o estudo que diz a “ciência é”) e a tecnologia (o estudo que diz “a técnica é”. O termo “ontologia” responde, originalmente, por um conceito filosófico, logo, “superior” na árvore do conhecimento segundo uma tradição milenar ocidental no seio da teoria do conhecimento – usa-lo é evocar um longo “discurso de verdade”. Por sua vez, a palavra passa a remeter, segundo alguns tons, nos anos 1990, à tecnologia (mais especificamente, às tecnologias da linguagem), categoria central de distinção técnico-científica do século XX.

É à procura de elementos socioepistemológicos que cumprem papel decisório nas “definições puras” e suas legitimações simbólicas do que trataremos aqui como “epistemologias castas”, ou “epistemologias puras” ou, ainda, “epistemologias sem indivíduos”, que chegamos à sociologia crítica do conhecimento de Pierre Bourdieu e procuramos, a partir do incômodo de Wilf, o decurso social da naturalização epistêmica constituído no campo informacional a partir da definição da expressão “ciência da informação” do bibliotecário Robert S. Taylor, no início dos anos 1960.

A obra de Bourdieu é um convite à compreensão da elaboração social da “naturalização epistemológica” a partir da observação a) dos posicionamentos acadêmicos de corpos e edificações (ou “nomes próprios” e “instituições” (BOURDIEU, 2013, p. 45), b) das rupturas sócio-epistemológicas e, por fim, c) das legitimações das teorias e dos conceitos científicos. Em outras palavras, trata-se de uma crítica social dos mecanismos implícitos de “purificação” da vida do cientista e de seus construtos. Interessa-nos, nesta discussão, a abertura para a análise da “epistême natural” apresentada em “A distinção: crítica social do julgamento”, e, principalmente, seus estudos da ciência e seus sujeitos, concentrados em “Homo academicus”, “A economia das trocas linguísticas”, “Para uma sociologia da ciência”, complementada pelas obras que colocam em questão a categoria de “simbolismo” nos regimes de poder, principalmente a partir da linguagem.

Algumas fontes

BOURDIEU, P. Homo academicus. Florianópolis: ed. da UFSC, 2013.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.

BOURDIEU, Pierre. A distinção: critica social do julgamento. 2. ed. rev. Porto Alegre: Zouk; São Paulo: EDUSP, 2011.

BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004a.

BOURDIEU, P. Para uma sociologia da ciência. Lisboa: Edições 70, 2004b.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BOURDIEU, P. Lições da aula: aula inaugural proferida no Collège de France em 23 de abril de 1982. São Paulo: Ática, 2001a.

BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001b.

BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996.

FROHMANN, B. Documentation redux: prolegomenon to (another) philosophy of information. Library Trends, v. 52, n. 3, p. 387-407, win. 2004.

FROHMANN, B. Reference, representation, and the materiality of documents. In: COLÓQUIO CIENTÍFICO INTERNACIONAL DA REDE MUSSI. 2011. Anais... Toulouse: Université de Toulouse 3, 2011.

LANCASTER, F. W. Indexação e resumos: teoria e prática. Brasília: Briquet de Lemos, 2004.

LANCASTER, F. W. Toward Paperless Information Systems. New York: Academic Press, 1978.

MEDEIROS, M. Recensão. Indexação e resumos: teoria e prática. Ci. Inf., Ci. Inf., Brasília, 22(2): 181-185, maio/ago. 1993

SALDANHA, G. S. O que é Ciência da Informação? Desafios imediatos e impactos hipotéticos da ?distinção? bourdieusiana na socioepistemologia dos estudos informacionais. In: Regina Maria Marteleto; Ricardo Medeiros Pimenta. (Org.). Pierre Bourdieu e a produção social da cultura, do conhecimento e da informação. 1ed.Rio de Janeiro: Garamond, 2017, v. 1, p. 72-101.

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