top of page

O trivium e a lição nhambiquara sobre o simbólico

Prolegômenos ao estado metainformacional...

Em sua presença no Brasil, Claude Lévi-Strauss (1957), conhecedor da ausência de escrita e de outras manifestações complexas de desenho por parte parte da nação nhambiquara, distribuiu entre os indígenas folhas de papel e lápis. A princípio, os nativos nada fizeram com o material.

Poucos dias depois, Lévi-Strauss (1957) viu os indígenas ocupados em traçar linhas horizontais onduladas no papel. Para a interpretação do antropólogo, estavam imitando as ações da escrita desenvolvidas por ele no cotidiano da convivência, porém sem nenhuma semântica. Na visão de Lévi-Strauss, o chefe do grupo percebera, entretanto, algo distinto.

O líder solicitou um bloco e, a partir dali, parou de comunicar verbalmente as informações demandadas pelo antropólogo. O índio desenhara as linhas sinuosas e as apresentara à Lévi-Strauss. Ambos, antropólogo e líder indígena, encararam o papel e os traços, como se pudessem decifra-las. Após isso, para comunicar algo ao seu grupo e ao antropólogo, o líder indígena o fazia com o bloco e suas “anotações” à mão, como se “lesse” os elementos gráficos.

A passagem conduz Lévi-Strauss (1957) a afirmar que, nesse cenário, o símbolo da escrita estava apropriado pela comunidade nhambiquara, mas a realidade continuava estranha. A escrita se apresentava, pois, em sua condição simbólica, antes de sua função comunicativa prática propriamente dita. Em outras palavras, a linguagem a se apresentava como poder (anterior à manifestação técnica da língua). E esta visão do poder fora imediatamente compreendida pelo líder da comunidade indígena. A mesma conclusão fora apontada por Bruno Latour (2002), ou seja, na Grécia Antiga, Alexandre conhecia certamente as forças potenciais e concretas que podiam ser extintas e/ou provocar massacres a partir de um império de signos.

Segundo Lévi-Strauss (1957), não se tratava, pois, de conhecer, de reter, de compreender, mas de aumentar o prestígio e a autoridade do indivíduo. Esta passagem é conhecida da obra Tristes Trópicos, no capítulo XVIII, chamado Lição de Escrita. Através do trecho da obra podemos reconhecer um princípio universal do caráter da relação entre linguagem e poder, pela sua condição simbólica, base para a compreensão de uma falsa dicotomia, ou seja, o jogo entre segredo e pós-verdade.

Em nossa posição já podia ali ser antevista a engrenagem simbólica do estatuto do trivium: uma lógica, uma gramática e uma retórica já se estabelecem no ato do líder indígena, ou seja, notamos uma capacidade de conferir um pressuposto sobre a linguagem, uma capacidade de comunicar e, em terceiro lugar, uma capacidade de persuadir, ainda que em condições distintas daquelas representadas pelas comunidades formalmente ágrafas. Estaríamos diante daquilo que Bakhtin (2006) aborda como uma o surgimento da consciência e sua afirmação mediante a encarnação material dos signos.

O poder de domar uma linguagem (que se converte facilmente no poder de explorar um povo, como as próprias conclusões de Lévi-Strauss apontarão) está, pois, relacionado com um discurso de verdade que se coloca na figura do líder e na capacidade de manipular signos, retê-los ou dissemina-los com a competência que seu contexto exige. Podemos reconhecer na pequena “alegoria” do poder da linguagem apresentada pelos nhambiquara um modelo de desenvolvimento de regimes de conformação do poder dos estados através da linguagem, onde as noções de segredo e pós-verdade são fundamentais para consolidar os impérios simbólicos, as superestruturas. Do ponto de vista de um marxismo pautado na linguagem, conforme Bakhtin (2006), os produtos desta linguagem são sempre concretos, fundados no mundo social, historicamente tecidos.

Em termos bakhtinianos, sem signos não existe ideologia. Logo, não existe poder. Quando chegamos ao um Estado cuja base interna e externa é fundamentalmente informacional, como o atual, sua condição de (arqui)segredo e de (pós)verdade se estabelece na mais refinada tarefa diária de manipulação sígnica.

Referência

SALDANHA, Gustavo Silva. Trivium, arqui-segredos e pós-verdades: Dos arcana imperii ao império simbólico no estado metainformacional. International Review of Information Ethics, v. 26, p. 91-103, 2017. Disponível em: <http://www.i-r-i-e.net/current_issue.htm>. 02 abr. 2018.

Outras fontes

Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz. Homo sacer III. São Paulo: Boitempo.

Aristóteles. (2005). Metafísica. São Paulo: Loyola.

Aristóteles. (1966). Poética. Porto Alegre: Editora Globo.

Aristóteles. (1991). Rhétorique. Paris: Gallimard.

Auroux, Sylvain. (1998). A filosofia da linguagem. Campinas (SP): Unicamp.

Bakhtin, Mikhail. (2006). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.

Braman, S. (2006). Information, policy, and power in the informational state. In Change of state: Information, policy, and power, pp. 1-8. Cambridge, MA: MIT Press.

Cassin, Barbara. (2005). O Efeito sofístico. São Paulo: ed. 34.

Capurro, Rafael. (1992). What is Information Science for? a philosophical reflection In: Vakkari, P.; Cronin, B. (Ed.). Conceptions of Library and Information Science; historical, empirical and theoretical perspectives. In: International conference for the celebration of 20th anniversary of the department of information studies, University of Tampere, Finland.1991. Proceedings... London, Los Angeles: TaylorGraham. p. 82-96.

Catanzariti, Mariavittoria. (2010). New arcana imperii. Disponible in: <http://escholarship.org/uc/item/81g0030z>. Access 19 jun. 2017.

Latour, Bruno. (2002). Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru: EDUSC.

Lévi-Strauss, Claude (1957). Tristes trópicos. São Paulo: Anhembi.

MacLuhan, Marshall. (2012). O trivium clássico: o lugar de Thomas Nashe no ensino de seu tempo. São Paulo: É Realizações.

MacLuhan, Marshall. (2017). La galaxie Gutemberg: la génèse de l’homme typographique. Paris: CNRS Éditions.

Otlet, Paul. (1934). Traité de documenatation: le livre sur le livre: théorie et pratique. Bruxelas: Editiones Mundaneum.

Platão. (1963). Crátilo: diálogo sobre a justiça dos nomes. Lisboa: Sá da Costa.

Platão. (2002). Diálogos: Protágoras, Górgias, Fedão. 2.ed. revis. Belém: Editora Universitária UFPA.

Platão. (2000). Fedro ou Da Beleza. Liboa: Guimarães Editores.

Platão. (2008). A República. 11. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Senellart, Michel (2006). As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Editora 34.

Shannon, Claude. E; Weaver, Warren. (1975). A Teoria matemática da comunicação. São Paulo: DIFEL.

Wiener, Norbert. (1989). The human use of human beings: cibernetics and society. Londres: Free Association Press.

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
Siga
bottom of page