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Sob os olhos germinantes dos povos da floresta, a bibliografia é outra


São as palavras dele [Omama – imagem original ancestral], e as dos xapiri [imagens de espectris espirituais], surgidas no tempo do sonho, que desejo oferecer aqui aos brancos. Nossos antepassados as possuíam desde o primeiro tempo. Depois, quando chegou a minha vez de me tornar xamã, a imagem de Omama as colocou em meu peito. Desde então, meu pensamento vai de uma para outra, em todas as direções; elas aumentam em mim sem fim. [...] Eu não tenho velhos livros como eles [os brancos], nos quais estão desenhadas as histórias dos meus antepassados. As palavras dos xapiri estão gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim. São as palavras de Omama. São muito antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo. [...] Eu, um Yanomami, dou a vocês, os brancos, esta pele de imagem [livro] que é minha.

Davi Kopenawa e Bruce Albert,

A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami

(2015, p. 65-66)



Entre os dias 15 e 16 de abril de 2021, aconteceu o Seminário Internacional A Arte da Bibliografia: da pandemia de livros à Bibliografia, uma parceria entre diversas instituições brasileiras e a Universidade de Bologna na Itália. Dentre os trabalhos comunicados estava: Outros livros, outras grafias (Altri libri, altre grafie), tema dessa Produção em perspectiva.


Comunicado pelo ecceliberiano Vinícios Souza de Menezes, Outros livros, outras grafias apresenta uma perspectiva outra para as questões bibliográficas. Partindo do pensamento ameríndio, a pesquisa assinala para as possibilidades de uma leitura dissidente do mundo bibliográfico ocidental. Sob os olhos germinantes dos povos da floresta, a bibliografia é outra. Outros livros, outras grafias são chaves semântico-pragmáticos para uma bibliografia outra, inscrita no corpo do mundo. Este livro outro encontra-se recoberto de grafismos alterantes (STRATHERN, 2006). Grafado como inscrição no corpo-pensamento, o livro é a pele de imagens que recobre o mundo (e a nós). A corporalidade da pessoa humana é o idioma simbólico do sujeito ameríndio (SEEGER; MATTA; CASTRO, 1979; VALENTIM, 2018, p. 229). As palavras de um xamã Marubo, povo amazônico, dizem: pensa assim com a carne mesmo (chinãma keskánã namikasenã) (CESARINO, 2012). Pensamento é corpo, e, corpo é imagem alterante (utupë) – desenhos de escrita de um devir-outro (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 67-69).


Donald McKenzie, neozelandês e estudioso do povo indígena Maori, em seu livro Bibliografia e a sociologia dos textos (2018, p. 59) argumenta que não é fácil estabelecer a continuidade do princípio bibliográfico em povos não-ocidentais. Em busca de uma abertura para que o “fato bibliográfico”, recorre aos estudos sociais da bibliografia textual, que denomina de sociologia dos textos. Tal abertura permite a McKenzie incluir no campo da Bibliografia, elementos até então desconsiderados, como, por exemplo, as paisagens naturais (GRENERSEN; KEMI; NILSEN, 2016; GRENERSEN, 2012).


Citando os povos aborígenes Arunta da Austrália, McKenzie nos diz que a terra é um texto para eles – não a representação da terra, em um mapa, num catálogo de biblioteca ou centro de documentação, como em Briet (2016) –, mas a terra mesmo, em sua função textual, em seu poder narrativo para esses povos. McKenzie (2018, p. 60-61) reconhece que desde um ponto de vista eurocêntrico, a aceitação de que uma paisagem tenha uma função textual ou uma pedra na terra dos Arunta (gnoilya tmerga) seja um texto sujeito à exposição bibliográfica é problemática, pois absurda diante dos princípios bibliográficos tradicionais. O que está em jogo são as condições epistêmicas para o estabelecimento do enunciado válido. Para os povos logocêntricos do ocidente, a condição comum entre os humanos e os animais é a natureza e a forma geral do Outro é a coisa/o ente. Conhecer é dessubjetivar. Para os povos ameríndios, a condição entre os humanos e os animais é a humanidade cultural. Humanidade é o nome da forma geral do Outro: a Pessoa (Sujeito) / o Não-Ente. Conhecer é personificar (CASTRO, 2017).


Como nas culturas polinésias que McKenzie trabalhou, os povos indígenas da América consideram a natureza, assim chamada pelos ocidentais, como cultura e as pedras, a terra, os animais, as plantas e todos os seres tidos por nós como “seres da natureza” são humanos e possuem agência. Logo, como identificado por McKenzie, a paisagem é cultural e, dentro de um horizonte pós-estrutural, possui funções textuais. Entretanto, para os mundos ameríndios, não é “apenas” isso. Liderança indígena do povo Krenak, Ailton Krenak (2019) argumenta que tudo é natureza, tudo o que é possível e que conseguimos pensar é natureza. As paisagens têm sentido, o rio canta, dança e se alegra com os seres que com ele compartilham vida. O rio, mais do que um texto, é um parente Krenak – o nosso avô, diz Ailton. Em um mundo como este, o livro não deixa de ter lugar. O que lhe ocorre é que ele deixa de ser um ente dessubjetivado para afetar-se pela alteridade radical: a vida. O que há é uma variação na natureza do livro. Ele deixa de ser uma coisa cultural, um ente existencialmente destacado da natureza – uma técnica cultural, diria Briet (2016) –, para tornar-se naturalmente um corpo dotado de pessoalidade, que varia conforme os seus desenhos, os seus grafismos.


A palavra é corpo-pele. A palavra-nome é a pele que “veste” a pessoa e possui diferentes sentidos e aspectos. A pele é viva e os grafismos, que abundam em corpos, cestas, ocas, redes e artefatos, são o que conferem agência às coisas dos mundos. Grafar sobre as peles é operar uma relação sociocósmica com a condição de humanidade do mundo. As linhas traçadas não deixam intacto seu suporte, mas o transforma. Desses vestígios teóricos das concepções do livro e da grafia, talvez possamos falar de outros livros, outras grafias – por ora, de outras bibliografias. A queda do céu criou a humanidade, deu pele à Terra, transformando imagens ancestrais em espíritos, humanos, animais, plantas, rochas, ornamentou com roupas (corpos) as materialidades da vida, deu superfície para um feixe de perspectivas. Germinar nossos olhos para esses outros livros e essas outras grafias é uma tarefa para a bibliografia que vem.


As coisas têm vida própria, tudo é questão de despertar a sua alma.

Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão (2006, p. 7-8).



Escrito por Vinícios Menezes, doutor em Ciência da Informação (PPGCI IBICT UFRJ), professor da Universidade Federal do Sergipe (UFS)



Referências


BRIET, Suzanne. O que é a documentação? Brasília: Ed. Briquet de Lemos, 2016.


CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2017.


CESARINO, Pedro Niemeyer. A escrita e os corpos desenhados: transformações do conhecimento xamanístico entre os Marubo. Revista de Antropologia, v. 55, n. 1, p. 75-137, 2012.


GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


GRENERSEN, Geir. What is a document institution? A case study from the South Sámi community. Journal of Documentation, v. 68, n. 1, p. 127-133, 2012.


GRENERSEN, Geir; KEMI, Kjell; NILSEN; Steinar. Landscapes as documents: the relationship between traditional Sámi terminology and the concepts of document and documentation. Journal of Documentation, v. 72, n. 6, p. 1181-1196, 2016.


KOPENAWA, Davi, ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


MCKENZIE, Donald. Bibliografia e a sociologia dos textos. São Paulo: Edusp, 2018.


SEEGER, Anthony, DA MATTA, Roberto, CASTRO, Eduardo Viveiros de. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional, v. 32, p. 2-19, 1979.


STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Unicamp, 2006.


VALENTIM, Marco A. Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.




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