As bibliotecas do Saara
Muito além de um deserto! O Saara é um habitat socialmente construído e, com tal, em grande parte, esconde-revela, vive-cultua, o conhecimento registrado. Ali foram edificadas historicamente distintas bibliotecas e essa é a proposta a desvelar indicada pelo trabalho da maître de conférence da Universidade de Bordeaux 3, Marie-France Blanquet (2013), na Revue de Bibliologie. Eis o Saara, um vasto território de dezenas e dezenas de culturas, com pluralidades comerciais, religiosas e científicas... E muitas bibliotecas...
O enfoque remonta mais uma vez os riscos do modelo da anglofonia americana na hegemonia do pensamento informacional mundial. Pouco se sabe, pouco se discute do pouco que se sabe, e o ignorar se torna a concretude científica sobre o acontecimento do mundo biblioteconômico na África, incluindo a trajetória dos territórios saarianos. Como indica Blanquet (2013, p. 115), Longtemps marginalisée, tant par l’orientalisme classique que par les sciences historiques et ethnologiques, la littérature manuscrite arabo-africaine, extrêmement prolifique, commence à peine à être découverte. Eis, pois, uma possibilidade a mais para reconstruir nosso discurso historiográfico, comparado e internacional...
Uma das importantes noções trazidas por Blanquet (2013) para compreender o fenômeno das bibliotecas do Saara está na questão das chamadas “bibliotecas nômades”. Em outros termos, o deserto socialmente construído atuou historicamente como uma das rotas mais importantes para a história do livro, a rota do Islã a partir do século VIII. As caravanas levavam especiarias, ouro e... manuscritos. Para autora, logo, eram também, para além de comerciais, caravanas do saber. O Saara, neste sentido, era um vasto território de comunicação entre Ocidente e Oriente, entre as mais distintas culturas africanas do norte e do sul do continente.
No entanto, a noção de fluxo, de bibliotecas e manuscritos que “passam”, que atravessam o Saara em suas caravanas, é suplementado por aquelas que restam, que criam suas “raízes” em dados “portos do deserto”. Blanquet (2013) nos apresenta em seu estudo como fontes fundamentais para compreender o fenômeno social das bibliotecas do deserto o trabalho de Attilio Gaudio, intitulado Les bibliothèques du Désert. Recherches et études sur un millénaire d’écrits, publicado em 2002 pela editora francesa L’Harmattan. Do mesmo modo, a pesquisadora aponta para os programas da Unesco que procuraram identificar e apoiar a salvaguarda da cultura bibliográfica saariana. Um dos focos de tais programas é a digitalização e a disponibilização dos documentos referentes a estas bibliotecas.
Um dos mais raros registros da cultura bibliográfica saariana está no Mali. Trata-se do conjunto de manuscritos que foram preservados em Tombouctou, cidade sagrada e grande centro de conhecimento do Saara. O patrimônio intelectual de Tombouctou é reconhecido como um dos mais importantes registros da cultura africana, potencialmente capaz de revelar uma e mais civilizações desconhecidas pelo Ocidente e pelo Oriente no contexto internacional. Trata-se de um centro cultural constituída pelas conquistas árabes, cujo coração era a Universidade de Sankoré. Os relatos de Al Saadi, na obra Tarikh Al-Soudan, uma crônica da vida cotidiana em Tombouctou, no contexto do século XIV, demonstra a rica vivência intelectual e científica da chamada “cidade misteriosa”.
Blanquet (2013) destaca, no entanto, que a exuberância de Tombouctou não representa nem de longe parte da totalidade dos registros da cultura bibliográfica em África. Outras cidades, como Tamegroute e Smara no Marrocos, oue Chinguetti, Ouadane, Tichitt, Oualata na Mauritânia, comprovam a riqueza vasta da produção de registros do conhecimento no continente. A autora demonstra como as bibliotecas e os manuscritos históricos da Somália, de Madagascar, de Camarões, do Senegal, como de muitas outras nações e regiões, apontam para possibilidades de reinterpretação da histórica africana e revelam as singularidades de múltiplas culturas.
Trata-se, pois, de um patrimônio cultural elementar para compreensão de nosso tempo, de nossa ciência e de nossa filosofia. E um dado imediato para problematizarmos a construção informacional do Saara como território epistêmico, de fluxo e de edificação de saberes. Ainda, o estudo representa uma fonte central para a crítica historiográfica do campo informacional e o contexto da prevalência do discurso estadunidense. Retomando as palavras de Blanquet (2013), as bibliotecas e os manuscritos do Saara nos permitem um reencontro com a própria história da Humanidade.
Referência
BLANQUET, Marie-France. Les bibliothèques du désert. Revue de Bibliologie: Schéma et Schématistisation, n. 78, p. 103-116, 2013.